sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Um pouco de Ferreira Gullar...


Metade
Que a força do medo que eu tenho, não me impeça de ver o que anseio.
Que a morte de tudo o que acredito não me tape os ouvidos e a boca.
Porque metade de mim é o que eu grito, mas a outra metade é silêncio...
Que a música que eu ouço ao longe, seja linda, ainda que triste...
Que a mulher que eu amo seja para sempre amada
mesmo que distante. Porque metade de mim é partida,
mas a outra metade é saudade. Que as palavras que eu falo
não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor,
apenas respeitadas, como a única coisa que resta
a um homem inundado de sentimentos. Porque metade de mim é o que ouço,
mas a outra metade é o que calo. Que essa minha vontade de ir embora
se transforme na calma e na paz que eu mereço. E que essa tensão
que me corrói por dentro seja um dia recompensada.
Porque metade de mim é o que eu penso, mas a outra metade é um vulcão.
Que o medo da solidão se afaste e que o convívio comigo mesmo
se torne ao menos suportável. Que o espelho reflita em meu rosto,
um doce sorriso, que me lembro ter dado na infância.
Porque metade de mim é a lembrança do que fui,
a outra metade eu não sei. Que não seja preciso
mais do que uma simples alegria para me fazer aquietar o espírito.
E que o teu silêncio me fale cada vez mais.
Porque metade de mim é abrigo, mas a outra metade é cansaço.
Que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba.
E que ninguém a tente complicar porque é preciso simplicidade
para fazê-la florescer. Porque metade de mim é platéia
e a outra metade é canção. E que a minha loucura seja perdoada.
Porque metade de mim é amor, e a outra metade também...

Ferreira Gullar

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